sábado, 17 de dezembro de 2016

Salvo pela bandeira
Nando da Costa Lima
Naqueles tempos, quando se falava em Bahia, a conversa se resumia à Salvador. O interior era tido pelo pessoal do Sul como pequenos povoados onde a ignorância vigorava. Daí ter sido o interior visitado apenas por aventureiros ou espertalhões que tentavam de uma forma ou de outra enganar o povo, sem saber que apesar da falta de opção para os jovens educarem-se (tinham o magistério como o curso mais elevado), o pouco que lhes era oferecido era de maneira rígida, ou seja, eles tinham noções de física, química, latim , francês, tudo isto ensinado por profissionais que tiveram condições de se formar na capital e exigiam o máximo de cada aluno, formando assim pessoas com um bom nível cultural, talvez até melhor que o da capital.
Foi num interior desses que veio parar o tenente. Quando chegou não foi nem notado, mas assim que se dirigiu pro hotel e apresentou-se como tenente Brasileiro da Silva, uma andarilho em viagem cultural, o gerente não perdeu tempo: enquanto o intelectual tomava banho ele espalhou na cidade que se encontrava hospedado em seu hotel um intelectual recém chegado do Sul, em viagem pelo interior da Bahia, pra enriquecer seus conhecimentos. Em pouco tempo a sala de recepção do hotel estava lotada, o prefeito, o juiz, o farmacêutico, o banqueiro; em suma a elite da cidade, e a discussão já estava armada. O motivo era a disputa pra ver quem hospedava o tenente, seria uma desfeita deixar um homem letrado daquela marca hospedado num hotelzinho de merda daqueles, até o dono do hotel concordou. O jeito foi disputar no par ou ímpar e quem ganhou foi o Dr., mas na hora que notou o prefeito quase chorando por ter perdido, concordou em ceder a honra
pro velho, pois além de ser a autoridade máxima da cidade, ele já estava com o pé na cova e tão cedo a cidade não teria outro privilégio daquele. Mais entusiasmados eles ficaram quando o tenente desceu pra sala, parecia Napoleão no dia que se tornou imperador. A farda era cáqui com botões dourados ligados uns aos outros em cordões prateados. No peito tinha mais medalhas que general boliviano, e contornando o tronco uma bandeira brasileira em forma de faixa.
Transferidas as bagagens para a casa do prefeito, o tenente já tinha 15 dias gozando do bom e do melhor, e nesse tempo se tornou para a cidade um símbolo de cultura. Apesar de ser um quarentão meio acabado, não lhe faltava admiradoras, mas ele explicava que seu amor pelas letras era maior que o amor carnal, era da opinião que intelectual não devia casar.
Um dia, para a tristeza da cidade, ele comunicou que já estava na hora de partir. Todos foram contra, sugeriram que ele ficasse a assumisse a diretoria da escola Normal. Mas ele foi irredutível, tinha que prosseguir sua jornada cultural.Porém fez questão de reunir os melhores alunos da comunidade para uma arguição. Os estudantes, sabendo disso, ficaram apavorados, foram à casa do juiz e pediram por tudo que ele conseguisse o tenente pelo menos dez dias para que eles se preparassem, pedido esse que foi aceito. Nesse espaço de tempo ele saiu em companhia dos ilustres da cidade arrecadando prendas no comércio, que seriam oferecidas aos alunos mais qualificados. Os comerciantes fizeram questão de doar o que havia de melhor, não era todo dia que tinham um acontecimento daqueles. Os alunos passaram uma semana de cão, revisaram tudo que sabiam mais de cem vezes, tinha aluno que já sabia “Os Lusíadas” de trás pra frente.
Enfim chegou o grande dia, o palanque decorado com bandeiras do Brasil e da Bahia. O tenente subiu acompanhado dos dirigentes da cidade. A filarmônica tocou o hino nacional com todos em posição de sentido, ele se destacava pela continência. E quando acabou a cerimônia ele fez sinal pra que subisse o primeiro aluno, ia começar o tão esperado teste de conhecimentos gerais. A diretoria tinha selecionado os dez melhores estudantes, e quando subiu a primeira aluna, tremendo igual vara verde, ele estufou o peito e perguntou: “Quem descobriu o Brasil?”. A moça pensando que era brincadeira respondeu meio sem graça: “Pedro Álvares Cabral”. Ele deu parabéns, entregou o prêmio e gritou pra diretora: “Manda outro”. Antes de o rapaz chegar ao palanque ele interrogou: “Em que ano o Brasil foi descoberto?”. O rapaz quase sorrindo respondeu: “Em 22 de abril de 1500”. O tenente entregou outro prêmio e chamou a atenção do rapaz: “Eu lhe perguntei só o ano, o mês e o dia seriam as próximas perguntas”. Quando acabou de falar foi castigado por uma vaia acompanhada de ovo podre, tomate e tudo de estragado que os estudantes conseguiram não se sabe como em tão pouco tempo. Saiu do colégio direto pra rodoviária sob proteção de dois soldados destacados pelo juiz temendo linchamento. O pior ficou para os alunos que promoveram a baderna, foram todos expulsos do único colégio disponível na região não por terem acertado o pseudo-intelectual com os ovos e tomates podres, aquele sacana merecia coisa pior! O motivo da expulsão foi o desrespeito à bandeira nacional que ele sempre trazia no peito, pareia até que era usada como proteção, pois segundo seus ex-admiradores ele não tirava pra nada.
O tempo passou. O interior em que ocorreu este fato se tornou uma grande cidade. O pseudo-intelecutal morreu, como muitos dos personagens que participaram do episódio, mas na memória dos que ficaram sempre haverá um lugar especial para o “andarilho em viagem cultural”, que pode não ter sido um grande homem, mas marcou com graça a história de uma cidade e de uma geração.
Um feliz Natal a todos… “noves fora os bunda mole”

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